27.4.09

Questão de conceito (sobre Marcelo Camelo)

À Nina



sou (Sony/BMG, 2008), de Marcelo Camelo

Coordenação gráfica: Priscila Lopes (2pix) e Rodrigo Linares


Ao ouvir o disco sou, de Marcelo Camelo, talvez se pergunte a relação do poema visualsol”, de Rodrigo Linares, estampado na capa, com as 14 composições apresentadas. O poema é constituído apenas pelo pronomenós” estampado de cabeça para baixo, formando então o verbo em primeira pessoa “sou”.


Uma primeira leitura possível do poema, considerando o contexto de uso, seria pensar no compositor participante de uma banda (Los Hermanos) e que agora apresenta seu trabalho solo. Observa-se então o coletivo e o indivíduo. Essa é uma idéia mais geral, mas plausível.


Uma segunda leitura, feita após a audição do disco, é que o poema parece sintetizar o sentido presente em muitas faixas: solidão e completude, o que se pode notar em vários versos das letras: “eu você e todos os encontros casuais” (“Tudo passa”) ou “posso estar mas sou de todo mundo / por eu ser um” (“Doce solidão”) ou ainda “caberá ao nosso amor o eterno ou o não dá” (“Janta”).


Arrisco uma terceira leitura do poema, autorizada pela complementaridade existente entre as duas palavras (o pronome mais o verbo): “sou/nós”. Essas palavras se desdobradas, ampliam o sentido do poema. O pronome de primeira pessoa está implícito no verbo sou: “eu sou”. Deste modo, o contrário faz sentido: o pronomenós” completado então com o verbo flexionado: “nós somos”. Isso ressalta e reforça as leituras anteriores de coletividade e individualidade, de solidão e completude.


Arriscaria ainda uma quarta e última leitura, porém desta vez me ocorre, por empréstimo, o que o disco de Marcelo Camelo dá ao poema de Rodrigo Linares: complementaridade amorosa. que as 12 canções do disco falam de amor (mas não somente) e se subentende o desejo da correspondência. Ou mesmo a existência nessa complementaridade de cada uma das partes.


Além do que foi dito, a idéia da solidão e lamento presentes nos textos se funde com esses sentimentos que as melodias e arranjos das canções evocam. Mas há no disco também duas faixas instrumentais, que são as transcrições para piano solo das cançõesSaudade” e “Passeando”, executadas por Clara Sverner. O timbre do piano acrescentou às peças de Marcelo Camelo um caráter mais dolente, pela acentuada duração das notas e ressonância características do instrumento.


Outro ponto a salientar é o projeto gráfico do disco. Foi feita uma primeira impressão tipográfica do poema apresentado na capa, do índice da contracapa e das letras do encarte, usada como matriz da impressão final. O resultado é uma mancha de texto intencionalmente falhada e gasta. O alinhamento dos textos em cada página mantem a mesma posição, ou seja, letra das músicas à esquerda e ficha técnica dos músicos à direita, mas se em cada página um posicionamento deslocado e irregular em relação às outras páginas, dando um aspecto despojado ao projeto.


Esse aspecto de despojamento que está no projeto gráfico, está presente também no conceito sonoro de todo o disco, que é uma espécie de ranhura, ruído, a começar pela voz do compositorem alguns momentos quase que não se compreende o que se canta. Há no final de algumas faixas, intervenções que são fragmentos de sons de falas, aplausos, partes de música, ondas do mar, que no conjunto não apenas funcionam como reforçam e justificam o conceito de sujeira e rasura.


Cabe ainda falar das imagens fotográficas do projeto gráfico, que têm o mesmo aspecto aparentemente solto e simples: cavalos num campo de flores, cavalos numa montanha, outro cavalo quase não visto pela falta de luz e a imagem de árvores também com pouca luz. Essas são as imagens do encarte.


Existem ainda as imagens da parte interna da capa, que se abre. De um lado, uma mandala (que simboliza a totalidade e a essência) rodeada de flores. E no lado oposto, a reprodução da pintura de um gato preto sobre um chão vermelho e em fundo amarelo. Gatos dão um ar de que não têm muito a ver com o ambiente em que circulam. A imagem dos gatos sugere uma atenção desatenta. E ainda uma certa preocupação despreocupada, que parece sintetizar muito bem o conceito do álbum de Marcelo Camelo. Esse conjunto de coisas distintas fazem sentido quando se pensa no todo. O despojamento está tão bem construído e o projeto (sonoro e visual) tão integrado, que nãocomo deixar de pensar na sua concepção. Mas o resultado é muito feliz, muito bom: uma organizada fluidez. Uma elegância despojada, discreta.

24.4.09

Murilo Mendes

"Que poderá fazer neste mundo de computadores eletrônicos alguém (por exemplo eu) que mal sabe as quatro operações?"

Fragmento de "Texto sem rumo", 1964-1966, seção do livro Conversa portátil.