1.1.10

Dois poemas de Emílio Moura (para 2010)

UM DIA

Seigneur! Seigneur!
nous sommes terriblement enfermés.
André Gide, Paludes

Enquanto os homens se agitam e se entredevoram, enquanto
os autos voam pelas avenidas, os garotos anunciam os [matutinos e os bancos se abrem,
dentro de nós,
as mesmas sombras de sempre estão contando a mesma [história de sempre.

Entretanto, lá fora,
eu sei que faz sol, lá fora.

Que força estranha
me impele assim para mim mesmo?

Um dia, entretanto, eu tenho certeza, nenhum obstáculo [será mais possível
e, livre, livre,
a vida há de prosseguir viva dentro de nós.

(Canto da hora amarga, 1936.)


CANÇÃO

Viver não dói. O que dói
é a vida que se não vive.
Tanto mais bela sonhada,
quanto mais triste perdida.

Viver não doi. O que dói
é o tempo, essa força onírica
em que se criam os mitos
que o próprio tempo devora.

Viver não dói. O que dói
é essa estranha lucidez,
misto de fome e de sede
com que tudo devoramos.

Viver não dói. O que dói
ferindo fundo, ferindo,
é a distância infinita
entre a vida que se pensa
e o pensamento vivido.

Que tudo o mais é perdido.

(Cancioneiro, 1945.)


















Gerhard Richter, Três velas, 1982, óleo sobre tela, 125 x 150 cm.